O Brasil atravessa um cenário econômico de crise fiscal. Esse quadro conduz o Governo Federal a aplicar os esforços para amenizar as graves consequências derivadas dessa situação. Ocorre que as medidas tomadas em época de crise não são as mesmas adotadas em momentos de estabilidade, o que altera a atuação do Poder Executivo, demandando a adoção de condutas para minimizar o impacto do déficit público, tanto o calculado pelo Banco Central, quanto o averiguado pela Fazenda Pública. O quadro é ainda mais agravado quando o Legislativo e o próprio Executivo perpassam crises políticas.

Assim, as providências que o Executivo e o Legislativo têm tomado para combater a crise econômica redundam, infelizmente, no aumento da carga tributária, realizada com muita frequência ao apagar das luzes do ano. O Governo, cada vez mais premido pela necessidade de recursos, vêm adotando atitudes que, no entanto, ultrapassam os limites constitucionais. É o exemplo da Medida Provisórian. 806, publicada em 30 de dezembro de 2017, que tratada tributação do imposto de renda sobre fundos de investimentos fechados.

Tais fundos têm uma especificidade importante: não admitem o resgaste anterior à data previamente fixada para o seu término, conforme determina o artigo 4º da Instrução n. 555 da Comissão de Valores Mobiliários– CVM – publicada em 17 de dezembro de 2014. Noutras palavras, o quotista só pode reaver o dinheiro aplicado no final do prazo estabelecido em assembleia pelo fundo.

De acordo com o novo modelo proposto, a tributação incidirá sobre a diferença positiva entre o valor patrimonial da cota em 31 de maio de 2018, incluídos os rendimentos apropriados a cada cotista, e o respectivo custo de aquisição, ajustado pelas amortizações ocorridas ao longo do prazo de duração do fundo.

Já a partir de 1º de junho de 2018, a incidência ocorrerá semestralmente, nos últimos dias úteis de maio e novembro de cada ano, no momento da amortização, do resgate de cotas em razão do término da duração ou do encerramento do fundo. A base de cálculo será a mesma daquela posta para a incidência em 31 de maio: a diferença positiva entre o valor patrimonial da cota, incluído o valor dos rendimentos apropriado a cada cotista agregado ao fundo no período de apuração, e o seu custo de aquisição, ajustado pelas amortizações ocorridas, ou o valor da cota; aqui, no entanto, na data da última incidência do imposto.

O texto traz, ainda, a hipótese de cisão, incorporação, fusão ou transformação de fundo de investimentos, na qual se considerarão pagos ou creditados aos cotistas os rendimentos equivalentes à diferença positiva entre o valor patrimonial da cota na data de quaisquer dos eventos supracitados, e o respectivo custo de aquisição, ajustado pelas amortizações ocorridas, ou o valor da cota na data da última incidência do imposto.

A gestão tributária caberá ao administrador do fundo a quem compete reter o imposto de renda na fonte.

O desconforto fiscal do Executivo é tão evidente que o conduz a editar medida provisória com inúmeras violações ao sistema tributário nacional, especialmente à Constituição Federal, como se demonstrará adiante.

A Constituição da República proíbe expressamente a veiculação da mencionada Medida Provisória que visem a deter ou a sequestrar ativos financeiros. É o que determina o artigo 62, §1º, inciso II. Além disso, o uso de medida provisórias somente é possível em casos de relevância e urgência, ressaltando que são requisitos cumulativos e indispensáveis, uma vez que estão também expressos no caput do artigo 62.

Nesse sentido, o fato gerador do Imposto sobre a Renda está disposto na Constituição Federal, artigo 153, III e no artigo 43 do Código Tributário Nacional – lei ordinária recepcionada como lei complementar – o qual fixou que a hipótese capaz de gerar a obrigação tributária de pagar o referido imposto é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos. Ora, se o fundo de investimento fechado, tautologicamente, por ser fechado, não permite o levantamento do valor aplicado e tampouco dos rendimentos apropriados, não há disponibilidade econômica e jurídica, razão pela qual não há ocorrência do fato gerador. Assim, a medida provisória não pode alterar uma lei complementar para trazer nova hipótese de incidência.

A equiparação entre fundos fechados e abertos,para fins de incidência do imposto de renda na fonte, não justifica a manutenção desses dois modelos jurídicos distintos de investimento.Quid juris, qual estímulo para que um investidor mantenha um capital e os seus frutos decorrentes estancados por um longo período de tempo sendo que a respectiva tributação incidente lhe será a mesma daquela prevista para os fundos de investimentos abertos, que lhe permitem o resgate das cotas?

Como já dito, o fato hábil a gerar a obrigação de pagar o imposto sobre a renda é a aquisição de disponibilidade jurídica ou econômica de renda ou proventos. O que não foi esclarecido é que tal disponibilidade ainda depende de um elemento reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como indispensável: o acréscimo patrimonial. Ou seja, para o Estado cobrar o Imposto sobre a Renda, só em casos nos quais o contribuinte obteve um ganho patrimonial e tem disponibilidade econômica e jurídica sobre o mesmo. Não é possível observar esses elementos no modelo proposto pela Medida Provisória n. 806/2017, pois, nos casos dos fundos fechados, tal acréscimo ocorre, evidentemente, no momento da amortização ou do regaste das cotas, o que impossibilita a tributação. Reitere-se: os fundos fechados ou condominiais, via de regra, só permitem o resgate no final do prazo contratado ou no encerramento do fundo, seja por qual razão juridicamente aceita for, legitimando, assim, a imposição do imposto de renda. Ou seja, só haverá disponibilidade econômica no momento do resgate e, somente neste momento, poder-se-á averiguar se houve acréscimo ou decréscimo patrimonial. O texto do novo modelo pressupõe tais elementos no último dia útil de maio e novembro. Não existe tributação sobre pressuposições, conforme artigo 116 do Código Tributário Nacional.

Tributar uma suposição é ato que viola inúmeros princípios básicos do Direito Tributário, a começar pela legalidade, passando pela capacidade contributiva, justiça fiscal, tangenciando inclusive a vedação ao confisco. E um ato dessa natureza tem reflexos ainda mais preocupantes no mercado financeiro e de investimentos. Isso porque o Estado deve estimular o comportamento de manutenção das riquezas no país, e esse estímulo é consequência direta não só da aplicação dos parâmetros constitucionais, mas de conceitos econômicos absolutamente reconhecidos. Ao tributar antecipadamente os fundos de investimentos fechados, antes de averiguar se houve riqueza disponível, o Estado provoca efeito diverso, e causa um desestímulo evidente ao investidor, já que este pode chegar a ver, na época do resgaste a sofrer prejuízo econômico com uma renda que não auferiu.

Pior: a norma não prevê hipóteses de abatimento de eventuais perdas ocorridas no período previsto para o encerramento ou resgate dos fundos fechados e condominiais, implicando violações constitucionais, especialmente confisco e desobediência à capacidade contributiva. Em termos práticos, as perdas hauridas nos períodos subsequentes são absolutamente “esquecidas” podendo, ao final, o quotista ter prejuízo e haver pago o imposto de renda, na modalidade fonte. Ou seja, a característica de antecipação, que é inerente ao imposto de renda na fonte, é totalmente desvirtuada, pois não há certeza, considerando ainda o atual cenário econômico, de que ao final o quotista obterá ganho.

Por sua vez, segurança jurídica é um vetor relacionado à estabilidade da Administração Pública em suas relações com a população. A sociedade necessita acreditar que o Estado seguirá as regras e obedecerá a lei a fim de pacificar a vida em comum. No caso da mencionada Medida Provisória, fala-se em redução das distorções existentes entre as aplicações em fundos de investimentos e aumento na arrecadação federal. O investidor, quando aplicou seu patrimônio em quotas de fundos de investimentos fechados, acreditava que a tributação ser-lhe-ia imposta no momento do encerramento ou amortização do fundo, seja pelo tempo, seja por extinção do fundo em si. Esse acordo está sedimentado por normas jurídicas, como as regulamentações feitas pelo Estado, mais especificamente, pela Comissão de Valores Mobiliários – autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda. Na mesma linha, a tributação do Imposto sobre a Renda concernente a esses fundos está regulada por diversas leis, a exemplo do Código Tributário Nacional.

No mesmo sentido, ainda que se entenda pela possibilidade jurídica se de tributar, o princípio da segurança jurídica é imbricado ao princípio da irretroatividade, isto é, o Estado, para concretizá-los, não pode fazer com que novos dispositivos legais surtam efeitos em fatos ou atos já praticados sob a égide de lei anterior. Isso porque a irretroatividade está ligada ao princípio da não-surpresa, o qual proíbe que novas regras se apliquem aos atos já praticados e que a nova norma seja aplicada aos novos casos,observando um prazo razoável de ciência e adaptação para sua vigência. Dessa forma, a Medida Provisória n. 806/2017, sob esse aspecto, quando altera a tributação do Imposto de Renda sobre Fundos fechados ou condominiais já constituídos,viola insofismavelmente a confiança na imutabilidade jurídica que o investidor tinha antes de tornar-se quotista, assim como fica evidente a inobservância aos princípios supracitados, deixando-o em um ponto de instabilidade no qual não pode decidir com clareza o que fazer, no que investir, quanto aplicar e como dar-se-á o resgate.

Considerando que todos os ramos de Direito se interseccionam, malgrado as suas especificidades, vê-se claramente que, tal qual o Direito privado já reconheceu, haverá a inserção ou reconhecimento de uma irretroatividade mínima, que é, sinteticamente, uma norma atingir um fato ou ato cujo início ocorreu sob a égide de uma determinada legislação, mas que, ainda não concluído,altera-se substancialmente por força de normatização subsequente.

Assim sendo, o sistema buscado pela Medida Provisória é inconstitucional e não deve produzir efeitos concretos, senão se sobreporá aos supracitados princípios da tributação e o tão precioso vetor da ordem normativa: a segurança jurídica.

Para que se tenha dimensão da gravidade dessa Medida Provisória é necessário ampliar a visão das implicações. Caso o Estado altere as regras dos fundos de investimentos como bem entende, o que fará o investidor quando cogitar aplicar seu capital em fundos de investimentos? Escolherá outro investimento? Mas qual aplicação escolherá? Será que a sua nova aplicação não sofrerá alterações estatais no decorrer do prazo? A resposta do investidor é incerta. E, ainda no aspecto ampliativo das consequências da insegurança jurídica nos diversos setores da economia, incertezas dessa natureza têm resultado em cascata: redução da atividade econômica (por força de ausência de capitais estáveis para investimento), implicando redução da arrecadação e, consequentemente, dos investimentos públicos que são inerentes à atividade estatal, em especial os essenciais (saúde, educação, saneamento básico etc.), o que representa, indubitavelmente, impacto negativo sobre a população. Outrossim, deve-se considerar os impactos advindos dessa situação na instabilidade política notória.

A conclusão inexorável é a inconstitucionalidade e ilegalidade da Medida Provisória, em razão da violação aos parâmetros máximos constitucionais e legais. Dessa forma, o investidor e o quotista podem, com claros e fortes argumentos,obstar os possíveis efeitos da nova regra nos tribunais, para que façam observar os vetores de justiça fiscal ao aplicar corretamente os princípios constitucionais, especialmente a segurança jurídica.

Baixe aqui o PDF desse artigo.